quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Os Maravilhosos Clássicos Esquecidos da Sétima Arte: “Cinderela Baiana”



Inauguro aqui uma nova categoria de postagem no blog. Destino este espaço a filmes que não foram aclamados pela crítica, nem tampouco pelo público, mas que merecem ser lembrados por sua peculiriadade. Talvez esse seja o primeiro e único post da categoria, já que o filme do qual vamos falar hoje é de uma singularidade incomparável.




Lançado no longínquo ano de 1998, o filme escolhido para essa árdua tarefa é “Cinderela Baiana”, a estréia de Carla Perez no cinema, e o responsável pela sua aposentadoria na carreira de atriz.


Cinderela Baiana é ousado desde sua concepção, pois mescla realidade e ficção em uma única obra, onde a protagonista e a atriz principal se fundem e se confundem na trama.


Carla Perez estrela a película no papel de Carlinha, uma garota pobre que vive com seus pais no limite extremo da pobreza no sertão da Bahia. Apesar da vida miserável em que viviam, os pais de Carlinha se mantinham íntegros e humanitários, como se vê logo na primeira cena, onde a protagonista, ainda criança, dorme no chão batido do casebre da família. O pai da menina a salva da investida de uma serpente que passeava sorrateira sobre a pequena criança. O homem, mesmo com fome, se recusa a se alimentar da serpente, e, usando seus talentos artísticos, faz o réptil desaparecer em uma demonstração absurda de ilusionismo.


Logo na sequencia, somos alertados para a importância da educação, onde o pai de Carlinha menciona que estuda em uma escola noturna, sacrificando o alimento da própria filha em detrimento da sagrada educação.


Enquanto o pai trabalha, a meiga criança de madeixas
douradas acompanha a mãe até a estrada que passa próximo a sua casa, onde a mulher tapa os buracos no asfalto na esperança de obter alguns trocados dos caminhoneiros que passam por ali. Nesse momento, vemos a personalidade iluminada da pequena, que mesmo com fome, e assistindo à mãe se humilhar por míseros trocados, retira uma alegria milagrosa do âmago de seu ser, e saracoteia seu corpinho em movimentos rebolatórios cheios de pureza e luz, anunciando o que ela viria a se tornar no futuro.


Desde o início do filme, percebemos uma forte tosse na mãe da pequena, o que, no cinema brasileiro, significa que a morte se aproxima. Após ser humilhada pelas crianças que disputavam com ela os trocados atirados sobre o pavimento, numa clara crítica ao preconceito contra os idosos, a sofrida mulher vai a óbito, deixando a pobre Carlinha sozinha com o Pai.


Mas nem só de desgraças é feita a vida da nossa pequena heroína, e, no mesmo dia em que perde a esposa, seu pai recebe a notícia de que conseguira um emprego na capital, onde também ganhara uma bolsa de estudos na gloriosa escola de contabilidade de Salvador. – Destaque para a interpretação sensacional do portador da notícia, em seu fusca quatro rodas.


Quando a família, agora reduzida a dois membros, parte para a capital baiana, há um salto temporal. Mas não um salto temporal qualquer. O diretor Conrado Sanchez (dos anteriores: A Menina e o Estuprador, A Menina e o Cavalo, e Como Afogar o Ganso), mostra como é arrojado
e revolucionário, fazendo a montagem de filmes como Pulp Fiction, de Quentin Tarantino, e Amnésia, de Christopher Nolan, parecerem extremamente conservadoras. Sanchez nos leva no futuro onde o tempo não é o mesmo para cada personagem. Enquanto para o pai de Carlinha 3 anos se passaram, para a protagonista percebemos um avanço de pelo menos 10 anos.


Entramos então em uma nova realidade, onde épocas diferentes coexistem e interagem entre si em um mesmo espaço. É então que somos apresentados a incrível dupla Bucha e Chico, este último em uma interpretação reveladora de Lázaro Ramos, que, desde já, mostrava ao que veio. Os dois, assim como Carlinha, são adolescentes de vinte poucos anos que, apesar de viverem em extrema pobreza na favela dos alagados, não trabalham e nem têm a intenção de fazê-lo.

 

Surge uma amizade entre as 3 crianças velhas, que (como diria o locutor da seção da tarde) formam uma turminha muito irada que vai se meter em muitas confusões. 


Depois de sofrer algumas humilhações por sua condição paupérrima, fazer sua dancinha da sorte para uma vendedora de acarajés, e mostrar como a fome passa rapidinho quando se começa a rebolar, a pequena e inocente Carla é descoberta pelo produtor de shows Pierre, numa interpretação inacreditável de Perry Sales, que superou qualquer ator no mundo inteiro na categoria overacting. (Jack Nicholson deve ter morrido de inveja)


A jovem e inocente dançarina cai nos encantos do amante latino de meia idade e bigodes protuberantes e acaba indo morar com ele. O sucesso da menina é imediato, e logo está fazendo turnês pela Europa e mostrando seu talento glúteo por todo o globo. No entanto, sem entender a ferocidade do show bizz, Carlinha se vê explorada por seu empregador, que chega a marcar dois shows em países diferentes no mesmo dia, novamente desafiando as dimensões do espaço tempo.


Quando a nova estrela descobre o amor em um jovem cantor de pagode, ela vê a fúria de Pierre, que manda seus capangas darem uma lição no cantor galanteador, em uma sequencia que, certamente, viria a inspirar os grandes filmes de ação dos anos seguintes, com golpes revolucionários e um estilo de luta que desafia a física.


Desiludida com a atitude de Pierre, e finalmente enxergando a maldade do mundo, Carlinha rompe com seu empregador e decide se dedicar a causas humanitárias – destaque para
a criança no hospital que é soterrada por presentes e não consegue nem se mexer de tanta emoção – junto com seus velhos amigos Chico e Bucha, os quais ela havia vilipendiado depois de alcançar fama e riqueza.



Após esse emocionante clímax, temos um desfecho tocante e misterioso. Carlinha volta às suas origens e exorciza seus antigos demônios, contagiando com sua luz rebolativa até mesmo policiais de elite e freiras, que se juntam a crianças famintas e descobrem a saciedade da fome através do rebolado.


Cinderela Baiana foi esquecido pela crítica, alvo de deboche pelo público e desprezado pela academia. Uma enorme injustiça para uma obra tão relevante que poderia ter revolucionado o cinema com sua originalidade e espontaneidade. Carla Perez já fazia o que Sacha Baron Cohen fez em Borat há muitos anos, e, infelizmente, não teve o merecido reconhecimento.

“Vai passarinho, você, como a criança também tem o direito a liberdade. De que adiantam essas campanhas demagógicas se estas crianças continuam aqui na estrada e com fome? Todos os pequeninos merecem proteção, alimentação, amor e paz.”

Se você ainda não assistiu a essa pérola escondida da sétima arte brasileira, aproveite assista agora, enquanto está disponível.
Na falta de paciência, assista apenas a antológica cena final:

Se você conhece algum Clássico Esquecidos da Sétima Arte, indique nos comentários!

Nenhum comentário:

Postar um comentário